terça-feira, 29 de novembro de 2011

A AVENTURA DE MONTAR "TRANSE"

A AVENTURA DE MONTAR "TRANSE" (de Ronaldo Radde), direção de Jorge Elias.
                    (Caricatura do blogueiro feita por artista de rua nos anos 70)


Vamos mais uma vez voltar no tempo, agora para rememorar as muitas alegrias e - por que não? - alguns dissabores vivenciados por ocasião dos ensaios, preparativos para a montagem, e apresentação do espetáculo teatral "TRANSE" pelo GRUTA - Grupo Unido de Teatro Amador, de Santos - SP do qual fizemos parte.

Início: A formação do grupo

Atendendo a anúncio veiculado nos jornais locais (dois, à época - A Tribuna e Cidade de Santos) um número bastante expressivo de jovens se apresenta para formar um grupo de teatro amador - mais um dentre tantos - com a proposta de estudar informalmente a história do Teatro; os seus teóricos, autores, diretores; o movimento amador na região, no estado, e mesmo nacionalmente; as técnicas teatrais; tudo com vistas a montagem de um espetáculo ao término de alguns meses de ensaios de um texto a ser escolhido, mediante deliberação, no decurso dos encontros realizados duas (ou até três) vezes por semana em espaços gentimente cedidos como foi, no caso, o Círculo Operário do Embaré.   A formação do grupo se deu, efetivamente, mediante ata de fundação, com designação da diretoria, escolha do nome GRUTA-Grupo Unido de Teatro Amador, etc. atendendo a formalidades. (Jorge Elias, sua esposa Célia, Nodge Filgueiras, Carlos Ferreira, sua esposa Luzinete, Achilles Abreu, Bruno Antonuche, Sidônia, Graça, Maria Lilian Castro, José Carlos Laranjeira, Concheta, Laerte Marioto, estão entre os fundadores).   Era a primeira vez então que muitos ouviam falar de Constantin Stanislawski, Bertold Brecht, Nelson Rodrigues, Dias Gomes, Fernand Arrabal...   Tomou-se conhecimento de textos como "Os fuzís da Senhora Carrar", de Brecht, do qual se fez leitura 'branca', discussão e exercícios de interpretação.   Outros textos foram igualmente abordados.   Quando da escolha da peça a ser montada efetivamente ("TRANSE", de Ronald Radde) foram providenciadas cópias xerox do texto para cada integrante do elenco então escalado, para direção e assistência de direção (que coube a mim), para técnicos - com as anotações específicas: luz, som, etc.   Providenciou-se também o pagamento dos direitos autorais junto à SBAT - Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (hoje denominada Sociedade Brasileira de Autores, mas mantendo a sigla SBAT).   Foi providenciada a censura prévia (texto e ensio geral) e também a contratação de data no Teatro Municipal de Santos, com o apoio da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo - SECTUR (mais tarde SECULT - Secretaria Municipal de Cultura) tendo como secretário o senhor Carlos Pinto.   Carlos Pinto e Thaná Correa, fiéis escudeiros um do outro, são dois nomes intimamente ligados ao movimento de teatro na cidade, com passagens diversas (e alternadas) pela burocracia municipal em diferentes gestões - o que certamente denota a competência de ambos - a despeito de alguma restrição feita, principalmente nos idos de 70 e 80, por parte de alguns.   Recentemente o senhor Carlos Pinto recebeu o título honorífico de Cidadão Francano, outorgado pela Câmara Municipal de Franca, sob a presidência do vereador Marco Garcia, mediante indicação coletiva, em solenidade acontecida no Teatro Municipal "José Cyrino Goulart", no dia 26 de novembro de 2011, às 20 h, e que contou com a apresentação da Orquestra Sinfônica de Franca, como parte das comemorações pelos 187 anos de Franca.   

TRANSE - A peça

"TRANSE", de Ronald Radde, autor gaúcho (Porto Alegre), é de 1970.   É um drama, "um espetáculo denso e sufocante".   O Catálogo da Dramaturgia Brasileira apresenta a seguinte sinopse: "Cinco personagens, (3 masc. e 2 fem.) cada um com uma origem diferente, encontram-se em local neutro, que apenas se sabe ser após a morte, e aí debatem suas lembranças e culpas, desnudando todas as suas falsidades que, em seu paroxismo, buscam mostrar como um resumo da própria condição humana."    Ou como nós colocamos: "Transe", de Ronald Radde, narra o drama pessoal de cinco personagens (um funcionário público, uma mulher adúltera, uma mulher feia e rejeitada, um homossexual, um filho de militar com tendência suicida), que vão se desvelando, se revelando, quase que num psicodrama, numa situação limite: a experiência de quase-morte.
Além da peça "Transe", Ronald Radde é autor de outros sucessos como "Apaga a luz e faz de conta que estamos bêbados"; "B... em cadeira de rodas"; "João e Maria nas trevas".   É fundador, mantenedor, diretor do Teatro Novo, em Porto Alegre, há mais de 40 anos.

A concepção do espetáculo "TRANSE", por Jorge Elias, para o GRUTA-Grupo Unido de Teatro Amador  

Jorge Elias, ao dirigir "Transe", decidiu que face a dureza do texto - especialmente quanto à fala da personagem central Jonas, filho de militar, revoltado e suicida - que certamente incomodaria o censor (e parte da plateia, com certeza), decidiu "amaciar", "esfriar", tornar mais "palatável" o texto TRANSE, de Ronald Radde, concebendo um prólogo e um coro (como na tragédia grega clássica) com inserção de cantoria - música composta especialmente para esta montagem pelo jovem maestro Juan Serrano.   A música, o colorido feérico das túnicas do coro, as luzes, davam um ar mais ameno a apresentação.   A princípio, não muito bem aceita esta concepção por parte de alguns do grupo, eu inclusive; entretanto, reconheçamos, isto certamente foi fundamental para que o grupo pudesse se apresentar naquele momento de grandes tensões político-sociais.

A música, de Juan Serrano

Coube a mim a incumbência de preparar os integrantes do coro e do prólogo no tocante a parte musical - especialmente o canto.   Eu era um dos poucos afeitos a música (José Carlos Laranjeira tocava acordes simples ao violão mas não lia partitura).   Embora não fosse propriamente um músico, um instrumentista, eu também tocava acordes simples no violão mas havia tido aulas de Canto Orfeônico no ginásio (hoje, 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental) e aprendera bem a ler partitura.   Recebera do jovem e talentoso maestro Juan Serrano, a quem fora solicitado - em caráter de urgência - compor um tema musical especialmente para "TRANSE" e, ainda mais, música incidental para a mesma peça teatral, o material reproduzido em parte acima.   Quando primeiro chegou-me às mãos, apresentava somente a linha melódica sem a harmonia.   Solicitei ao maestro a gentileza de acrescentar as cifras, no que fui prontamente atendido, facilitando enormemente o trabalho.   Ensaiamos uma dúzia de amadores no coro - na verdade cantando em uníssono pois não tínhamos como fazer arranjo para duas, três ou mais vozes.


Prólogo - A inclusão de pessoa com deficiência visual

Jorge Elias, como diretor do espetáculo, concebera um prólogo que consistia nas falas alternadas de dois atores (um representando o negativismo, o mal, a escuridão - eu; outro representando o otimismo, o bem, a claridade - Benê).   Benê, como era carinhosamente tratada, era interna da associação beneficente LAR DAS MOÇAS CEGAS, com ótima sede situada na Avenida Ana Costa, onde Benê estudava (em Braile) e desenvolvia outras atividades.   Era negra.   E um pouco acima do peso para os padrões à época.    Além das poucas falas do prólogo (Benê dizia sua fala mais plantada, mais estática; eu dizia a minha fala em movimentos ao redor de Benê, com muito gestual) também cantávamos e tocávamos violão acompanhando o coro.



Técnica

O cenário da peça "TRANSE" é despojado, praticamente inexistente.  Um tablado, sobre o qual estão os cinco atores, ostenta a um canto em relêvo um telefone (do modelo antigo) sob foco de luz intensa constante até a última cena, quando é o último foco a ser apagado.
O figurino é também originalmente pobre, constituindo-se de roupas hospitalares.   A senhora Célia, esposa de Jorge Elias, encarregou-se da confecção do figurino.   As cinco personagens que viviam o drama vestiam roupas hospitalares ('camisolas') de que se desvencilhavam a medida que cada qual ia fazendo sua apresentação, mantendo então apenas algum 'aplique' que denotava sua inserção social: o funcionário público, a mulher adúltera, a mulher feia e rejeitada, o homossexual, o filho de militar.   Célia confeccionara também a indumentária vistosa, colorida, longa, dos integrantes do coro e dos dois atores que faziam o prólogo.
A iluminação e sonoplastia (esta consistia basicamente de som de batida de automóvel, sirene de ambulância, toque de telefone) foram executadas por funcionário do Teatro Municipal de Santos, senhor Módica.    

Elenco

Carlos Ferreira..............................Jonas (filho de militar)
Nodge Filgueiras...........................Anselmo (homossexual)
Bruno Antonuche..........................funcionário público
Maria Sidônia...............................mulher feia
Maria das Graças.........................mulher adúltera
Achilles Abreu  e  Benedita...........prólogo
Maria Lilian, Concheta, Luzinete, José Carlos Laranjeira, Edson Bispo e outros: CORO

O resultado final foi bastante satisfatório mesmo para alguém como eu que não gostara de início da concepção do diretor para "TRANSE".   Jorge Elias chegou a mencionar que o próprio senhor Carlos Pinto teria ficado muito bem impressionado com o espetáculo.   Fato é que todos nós estávamos eufóricos com o feito, a aventura de montar "TRANSE", de termos fundado um grupo de teatro amador, de termos conseguido acolher uma pessoa com deficiência visual e necessidades especiais (além de já ter idade bem acima da média dos demais participantes), de termos tido momentos de desinibição, de relaxamento, de concentração, de aprendizagem, de descobertas.

Namoro sob os refletores

Não se pode deixar de mencionar que à época "rolou" namoro entre alguns de nós, integrantes do elenco.   Pelo menos dois ou três casais apaixonados se formaram ali, além dos já casados.   Já formados ou cursando a faculdade ali estavam psicóloga, assistente social, administrador de empresas, jornalista, além de funcionários no comércio, indústria, serviços (e um ou outro desempregado, dentre os mais jovens). 

Burocracia

O teatro amador de Santos sempre foi um movimento forte, tendo projetado nomes importantes que fazem sucesso até hoje na TV, no cinema, no teatro mesmo, ou ainda em outras carreiras como jornalismo, publicidade e propaganda, psicologia, etc.   Parece que sempre houve um certo "racha" entre grupos e participantes em relação à Federação Santista de Teatro Amador e mesmo em relação a Secretaria Municipal de Cultura, alguma "animosidade", ainda que se possa entender como algo artificial, "fabricado".   Dos dois nomes fortes da burocracia citados, Thaná Correa (homenageado este ano no enredo da escola de samba vencedora do Carnaval santista - que trouxe como destaque, seu filho, o consagrado ator Alexandre Borges) e Carlos Pinto, talvez se pudesse aventar que o primeiro estivesse mais para a 'criação', enquanto o segundo estava mais para a 'administração'.   Seu livro de cabeceira talvez fosse Il Principe, de Niccolò Machiavelli (1469 - 1527).   Chi lo sà?

Letras completas das melodias: tema musical de "Transe" e música incidental

Tema musical de "Transe"                                                  Música incidental

Você é livre, você decide se quer                                       Da maneira pela qual reajo
Desce, fica parado, busca o infinito,                                    Aos acontecimentos
Retarda o passo, cai e levanta, resvala,                               É que determino o meu futuro
Escapa, se encarcera, se despedaça.                                  Se dou fé aos maus pensamentos
                                                                                          Há uma força que me destrói.
Refrão: Gente que nasce, gente que corre,
            Gente que chora, que morre. (2x)
                                                                                               Música incidental
Você que pensa criou a máquina
Pra dar conforto, vencer o tempo.                                       Por mais árdua que seja a prova
Você a usa como um engenho do mal                                  Jamais abandone a fé,
Se destruindo, só destruindo                                                A esperança e a determinação.
Tudo e todos, sem distinção.                                               Suplantará qualquer situação aflitiva.
                                                                                           Suplantará qualquer situação aflitiva.
Refrão

Você odeia, você se odeia                                                        Música incidental
Ódio marcado, ódio que mata
Ódio terreno, ódio explosão                                                Lembre-se que o desejo atrai
Ódio mesquinho, ódio com ódio                                          As oportunidades
Sem remorso, sem perdão.                                                  E que o medo somente o leva
                                                                                           Ao fracasso
Refrão                                                                                Deus não pune, Deus não pune
                                                                                          Você é quem castiga a si mesmo.
Você é homem, é quase deus
É corpo e alma num só compasso
Por que se avilta mudando o passo
Desse equilíbrio de paz e amor
Mudando o rumo do seu destino
Mudando o rumo do destino
Ser criatura, ser criador.

Refrão

Você é o relógio que marca as horas
Você é a máquina incansável
Você é ternura entre as pessoas
Se não carregar por caminho pedregoso
A sombra do seu passado.

Refrão

Você é luz que pode iluminar
A existência de um ser
Você é o elo que existe
Se procura querer, se procura querer
Querer mudar.

Refrão final: Gente que nasce, gente que foge,
                   Gente que chora, que morre.
                   Gente que é ser, gente que é vida,
                   Gente que sofre, que é gente.   
     
     

7 comentários:

  1. Muito boa publicação Achilles. Sem dúvida uma verdadeira viagem histórica à uma época que não devemos nunca esquecer, sobretudo, para que não se repita. Mas confesso que fico frustrado por não poder ver a peça.Seria possivel publica-la?

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  2. Esqueci de assinar...Saymon

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  3. Prezado Saymon
    Não tenho comigo xerox remanescente do texto de TRANSE (como vc pode perceber, quando localizo material da época eu posto - é o caso aqui das partituras originais). Vou tentar entrar em contato com o autor e ver se consigo pra vc. Ah, sim: REBORDOSA NO MORE. KNOCK ON WOOD!
    Obrigado mais uma vez por prestigiar o blog.
    Achilles F. Abreu

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  4. Cara quanto tempo . Participamos juntos dessa aventura muito louca pra época. Ditadura pesada, texto mudado por causa da censura, tinhamos que escrever músicas em códigos ee outros baratos, saudades. Quase esqueço eu sou Edenilton M Peres, endereço edeniltonperes@yahoo.com.br. O já não tão famoso Didi

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  5. Cara quanto tempo, por você anda ? Tempos bons esses né? Fazer música em códigos, censura brava, teatro tendo que mudar texto. Edenilton M.Peres

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  6. Edenilton Mendes Peres16 de janeiro de 2012 às 12:37

    Cara quanto tempo, por onde você anda? Parceiro de muitas músicas. Saudades.

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  7. Caro Edenilton Mendes Peres (Didi)
    De fato, muito distantes no tempo vão esses acontecimentos mas a lembrança dos amigos permanece vívida. Agradeço a sua participação neste singelo blog de reminiscências, o que confere a ele credibilidade. Fique a vontade para fazer correções se for o caso.
    Abraço.
    achilles-fonseca@bol.com.br

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